domingo, 8 de maio de 2011

PARA O AMIGO OSÓRIO PEIXOTO



“(...) Para a velhice eu vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.”

Amigo Osório, por que ‘Travessia’ para homenageá-lo? Não foi à toa, claro!  Fernando Brant e Milton Nascimento usaram justamente a última palavra da obra de Rosa para título da famosa composição, e isso também não foi à toa. É o próprio Milton quem diz: “O importante não é a saída, nem a chegada, mas a travessia”.
Pois é, o importante é o caminho, o percurso. Morte? “Nonada”! Não é nada, meu amigo! O melhor de tudo é que você está aqui, muito presente. Continua muito presente em nossa memória, em nossa saudade. A todo o momento, lembramos você. “Viraemexe”, seu nome é citado. Hoje, por exemplo, em uma tarde de maio, arrumando a estante e ‘remexendo’ em velhas saudades, você “passou” por aqui. Disse-me da grandeza de ‘Tarde de maio’, do Drummond. Não me contive. Fui relê-lo. É lindo mesmo! É epifânico.

Tarde de maio

Como esses primitivos que carregam por toda parte o
[maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.
Não há nunca testemunhas. Há desatentos.
[Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita,
[sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

Amigo, nem houve necessidade de uma “fictícia primavera” para que você renascesse. Até mesmo porque, em verdade, você nem chegou a ir. Sua presença entre nós é imperiosa, principalmente quando insistimos em reler seus belos escritos. Que talento, ‘hein’, rapaz! Pois é, mas essa constante “presença” também não impede uma “particular tristeza”... que acaba com a gente. É, camarada, à medida que as pessoas se distanciam de nós, para não dizer outra ‘coisa’, os dias vão ficando chatinhos, chatinhos, como disse a Graça. Tive de concordar com ela. Tudo bem. Prossigamos. O que nos salva é a poesia. Bem disse a Adélia Prado que “a poesia é salvífica”. E É mesmo! Sua “Cigarra”, por exemplo, atrelou as patas bem no meu peito e não há Cristo que a faça ir embora. Pode ser piegas confessar, mas, toda vez que leio esse poema, choro à beça, sabia? Ponha reparo nesta ‘belezura’ toda:

CIGARRA

Meu abacateiro se rebenta em canto,
chiado longo a varar a tarde
ou serra sonora a cortar silêncios.

É a mesma cigarra que todo ano chega
nas asas do verão,
gratuitamente encantando o dia.

Cresceram juntos,
o abacateiro e ela
e ele lhe reserva o mesmo ramo antigo
e ela lhe canta o mesmo canto amigo.

Pelos séculos cantarão cigarras
e pelos séculos eu cantarei também,
na luz dos sóis que se vão dormir
na ritmada voz de meus irmãos poetas...


Meu amigo, por mim, eu ficaria aqui, horas e horas, “batendo papo com você”. No entanto, sei que ‘cê’ deve ter mais poemas para escrever. “Peraí”! Lembrei-me, agora, do Ramos Rosa, nosso grande poeta português. Divida comigo esta maravilha, amigo:

Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio
não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
Ah! Graça e eu temos um compromisso: levá-lo de volta à sua Campos. Você tem ficado muito por aqui, e isso não é legal, principalmente para seus conterrâneos. Imagine o que eles não vão falar... Vai rolar, com certeza, uma ciumeira danada. Cumpriremos a promessa, ok? Não dizem que “promessa é dívida”?! Pagaremos essa, meu amigo. Não se preocupe.
Até qualquer dia.
Abração, 
Fábio

ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. São Paulo: Círculo do Livro, 1991. P. 52.
DUARTE, Maria Dolores Pires do Rio. Travessia: a vida de Milton Nascimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
ROSA, António Ramos. In Viagem Através de uma Nebulosa.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
SILVA, Osório Peixoto. Poemas de Osório e seu olhar sobre o Rio. Campos dos Goytacazes, RJ, FCJOL, 2007.


5 comentários:

  1. Para um texto tão belíssimo, só se diz: "Amém!"...
    Aline Benincá

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  2. Obrigado, Aline. Adorei prestar essa homenagem ao Osório, amigo e escritor que faz muita, muita falta.
    Bjs,

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  3. Graça já leu?
    Com toda certeza vai gostar e muito...

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  4. Ai, ai...
    Repare só o meu nome em cima e a data de 13 de maio abaixo...

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  5. Se a Graça leu? Claro! Foi a primeira... e chorou à beça, ela me disse. Tenho muitas saudades do Osório, Fê. Que inteligência, não?
    Bjs,

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