domingo, 1 de maio de 2011

SABATO E A VIDA

Algumas vezes na vida senti que corria perigo e podia morrer. E, no entanto, aquele sentimento da morte em nada se parece com este que vivo agora. Então ela teria sido parte das minhas lutas ou de alguma outra circustância: um fracasso dos meus projetos. Eu poderia ter morrido inesperadamente, e não teria sido como agora, quando a morte vai tomando conta de mim aos poucos, quando sou eu quem se inclina a ela.
Sua chegada não será uma tragédia como teria sido antes, pois a morte não me arrebatará a vida: já faz tempo que estou esperando por ela.
Há dias em que me invade a tristeza de morrer e, como se fosse possível enganar a morte, corro a me entrincheirar em meu estúdio e me ponho a pintar com frenesi, crente de que ela não me arrebatará a vida enquanto houver uma obra inacabada entre minhas mãos. Como se a morte pudesse entender as minhas razões, e eu bancar a Penélope para detê-la.
Quando as pessoas me param na rua para me dar um beijo, para me abraçar, ou quando compareço a algum evento, como a Feira do Livro, onde uma multidão espera por mim durante horas e me cobre de afeto, uma invencível sensação de despedida nubla minha alma.
Cada vez dou menos importância aos exercícios racionais, como se já não tivessem muito a me dar. Como bem disse Kierkegaard, "a fé começa justamente onde termina a razão". Há momentos em que navego mar adentro sem perguntas, sem reparar na chuva nem no frio. E outros em que me agarro a velhas sabedorias esotéricas, encontrando calor em suas antigas páginas como nas pessoas que me rodeiam e cuidam de mim. Sinto vergonha ao pensar nos velhos que estão sozinhos, abandonados ruminando seu triste inventário de perdas.
Antigamente a morte era para mim a prova da crueldade da existência. O fato que diminuía e até ridicularizava minhas prometéicas lutas cotidianas. O atroz. Então eu costumava dizer que, para me levarem até a morte, precisariam do auxílio da força pública. Era assim que eu exprimia minha decisão de lutar até o final, de não me entregar jamais.
Mas agora que a morte se avizinha, sua proximidade me irradiou uma compreensão que nunca tive; neste entardecer de verão, a história do vivido está à minha frente como que posta em minhas mãos, e às vezes um tempo que eu julgava desperdiçado se mostra com mais luz que outro, que eu tinha por sublime.
Esqueci grandes trechos da vida e, em compensação, ainda palpitam em minhas mãos os encontros, os momentos de perigo e o nome daqueles que me resgataram das depressões e amarguras. Também o de vocês que acreditam em mim, que leram meus livros e me ajudarão a morrer.

SABATO, Ernesto. A resistência. Tradução Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

2 comentários:

  1. Eu, que me agarro tanto a vida, e espero um dia chegar pelo menos aos 80 anos de idade, não posso dizer que entendo isso: "Há dias em que me invade a tristeza de morrer e, como se fosse possível enganar a morte, corro a me entrincheirar em meu estúdio e me ponho a pintar com frenesi, crente de que ela não me arrebatará a vida enquanto houver uma obra inacabada entre minhas mãos. Como se a morte pudesse entender as minhas razões, e eu bancar a Penélope para detê-la."

    Parabéns pelo post, pela homenagem, pela sintonia com essa coisa inefável que chamamos vida.

    Um bom domingo de sol para você! Beijos!!!

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  2. Obrigado, querida.
    Engraçado que não sei o porquê de eu ter descoberto o Sabato há apenas quatro anos. Não me perdoo. Tudo bem. Ao lê-lo, minha vida mudou bastante... e continua mudando.
    Beijos grandes e obrigado pela leitura atenta.
    Fábio

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