sábado, 28 de maio de 2011

A "SOZINHEZ" DOS 100

Foto: Fábio Brito

A “SOZINHEZ” DOS 100
Por Fábio Brito
Para Therezinha Fassarela, amiga mais que querida

Dias atrás, minha mãe e eu recebemos um convite muito honroso para nós: aniversário de 100 anos da tia de uma amiga muito especial, muito amada. Entre um papo e outro, conversamos sobre o vigor, a despeito de um ou outro momento de depressão, da aniversariante: ágil, lépida, inteligente, enfim, lúcida. Soube até que ela sobe e desce escadas várias vezes durante o dia. Taí a tão procurada lucidez quando se chega a uma “idade mais boazinha”, como dizem os portugueses. E a tia conseguiu. É uma dádiva, dissemos. Não há como negar isso.
Conversa vai, conversa vem, comentamos sobre solidão. Mas não sobre qualquer solidão. Queríamos saber da solidão dos 100. Em se tratando da tia, por exemplo, quantos “de sua época” ainda estão vivos?, perguntamos. Ninguém demorou muito para responder. A sobrinha tentou buscar na memória um ou outro nome de algum vizinho da tia, ou parente. Nada! Todos já morreram. Alguns até que viveram bastante, mas não chegaram aos 100.
Lembrei-me, então, de uma cena da minissérie Queridos Amigos, escrita por Maria Adelaide Amaral e exibida pela Globo há poucos anos (2008, para ser exato). A personagem interpretada pela atriz Fernanda Montenegro, ao chegar, se não me engano, a um bar, tece algum comentário sobre a impressão que se tem, depois de certa idade, quando se vai a certos lugares: é como se os amigos tivessem saído mais cedo. Quando ouvi isso, gelei. Dito pela Fernanda, ficou mais doído e forte.
Trazendo mais ‘pra’ cá: não estou nem na metade dos 100 (falta pouco!) e, de certa forma, essa solidão (talvez uma poeirinha ‘dela’) já se avizinhe. Muitos de meus amigos, por exemplo, a maioria dos “mais chegados”, são mais velhos que eu (não tãããão mais velhos, mas mais velhos). Muitos parentes próximos – é óbvio! – também estão envelhecendo comigo: os tios, por exemplo, que adoro, estão se distanciando. O pai já se foi. Daqui a um tempo, meus amigos mais novos também estarão mais velhos. E eu? Bem mais velho. É... quando chego a alguns lugares, não mais me surpreendo quando, nitidamente, também tenho essa sensação relatada pela personagem da Fernanda em Queridos Amigos. Fazer o quê? Enfrentar. E com altivez, de preferência.  
Essa solidão também se faz imponente em outras, vamos chamar assim, frentes. Na tentativa (nada de neurose!) de acompanhar - até certo ponto, claro! – as tais evoluções tecnológicas (as eternas evoluções tecnológicas!), é nítido o descompasso se nos compararmos com a garotada “de agora”, que, no útero, já sabe tudo de computador e outras “cositas” mais. Nós, os de outras gerações, aprendemos, sim, o básico (ou até um pouquinho além), para que não nos tornemos ETs totalmente fora deste mundo (para muitos, é por questão de sobrevivência mesmo). Entretanto, há os tais limites. Muitos dos quais eu até poderia, se quisesse, ultrapassar, mas não quero, não tenho “saco”, não tenho estômago. Meus livros impressos me esperam, meus vinis me esperam e muitos mais itens de “outro mundo”, um mundo ‘passado-presente’, me esperam.  Agora, vale uma pausa: ai, os vinis! Como os ouço com prazer! Adoro aquele barulho que chamo de “areinha” e que surge do contato da agulha com o espaço que antecede a primeira faixa. Estou, neste momento, imaginando a “criançada” tentando “ouvir” esse barulhinho. Desista, meninada! Isso é luxo para poucos. Fino acepipe. Procurem os hambúrgueres de vocês e fiquem satisfeitos. Lambam os beiços! Bom apetite!
Nesse embate passado x presente, há mais (muitas!) situações interessantes, várias até engraçadas. Há uns meses, num ‘shopping’ da vida, entrei para procurar uma camisa. O vendedor, um rapaz com uns 18, 19 anos, resolveu me mostrar, entusiasmado, várias. Com muita educação, dei-lhe o tempo necessário para retirar das sacolas várias que ele julgava adequadas a mim. É claro que não careci de muito tempo para dizer a ele – com bastante polidez, é claro! – que nenhuma ficaria bem em mim. Educadamente, ele me disse: “Mas estão todas na moda!” “Eu é que não estou na moda”, respondi, também educadamente. Disse-lhe mais: “Já sou um senhor. Um jovem senhor, mas um senhor”. Não satisfeito, ele sugeriu que eu visse umas bermudas. Topei! Quando vi, levei um tempinho para enxergar tantos bolsos, tantos apetrechos, tantos penduricalhos. Mais uma vez, e com delicadeza, eu lhe disse que elas eram muito enfeitadas e que eu não ficaria “muito bem” se as usasse. Resultado: nada de camisa ou bermuda naquele dia. Fazer o quê?!
Retomando o início de nossa conversa, tentei lembrar-me de outras pessoas que, assim como a tia de minha amiga, também chegaram aos 100, e até já passaram, como D. Canô Veloso, mãe de Caetano e de Bethânia, e Oscar Niemeyer, um dos arquitetos de Brasília: ambos caminham para os 104. Também continuam lúcidos. Talvez o segredo seja levar a vida “caymminianamente” (Caymmi chegou aos 94!). É claro que, para se chegar até lá, não vai ser tudo na base do amor, do sorriso e da flor. Até lá, nem tudo vai caminhar “sur de roulettes”, ou seja, “maravilhosamente bem”. Quer encarar? Acho que vale a pena. Sempre vale, não é? Cuide-se, então! Para mim, vale o que nos disse Joyce na canção “Monsieur Binot”, homenagem ao iogue (Vítor Binot) que a inspirou:

“Olha aí, monsieur Binot / Aprendi tudo o que você me ensinou / Respirar bem fundo e devagar / Que a energia tá no ar / Olha aí, meu professor / Também no ar é / que a gente encontra o som / E num som se pode viajar / E aproveitar tudo que é bom / Bom é não fumar / Beber só pelo paladar / Comer de tudo o que for bem natural / E só fazer muito amor / Que amor não faz mal / Então, olha aí, monsieur Binot / Melhor ainda é o barato interior / O que dá maior satisfação / É a cabeça da gente / A plenitude da mente / A claridade da razão / E o resto nunca se espera / O resto é a próxima esfera / O resto é outra encarnação...”

Vivamos! E sem medo!

FAZER 70 ANOS*
Carlos Drummond de Andrade

Fazer 70 anos não é simples.
A vida exige, para o conseguirmos,
perdas e perdas no íntimo do ser,
como, em volta do ser, mil outras perdas.

Fazer 70 anos é fazer
catálogo de esquecimentos e ruínas.
Viajar entre o já-foi e o não –será.
É, sobretudo, fazer 70 anos,
alegria pojada de tristeza.

Ó José Carlos, irmão-em-Escorpião!
Nós o conseguimos...
E sorrimos
de uma vitória comprada por que preço?
Quem jamais o saberá?

À sombra dos 70 anos, dois mineiros
em silêncio se abraçam, conferindo
a estranha felicidade da velhice.

*ANDRADE, Carlos Drummond de. Amar se aprende amando. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.


ENVELHECER *
Mario Quintana
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

* 80 anos de poesia / Mario Quintana; organização Tânia Franco Carvalhal. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Globo, 1987.

A ÚLTIMA ESCALA
Aderbal Freire-Filho*

Escrevo enquanto completo 70 anos. Como não se festeja a hora do nascimento, graças à falta de precisão da ciência, e sim o dia, levamos um tempo maior para completar um aniversário do que para nascer. Se fosse como corresponde, o aniversário seria igual à meia-noite do 31 de dezembro, o tempo do estouro da garrafa de champanhe, puft! Completei hoje de manhã 70 anos, devia dizer. Festejou? Não, dormi. O despertador não funcionou, fica pro ano que vem o champanhe que estava na geladeira esperando a hora. Como não é assim, um aniversário passa mais devagar do que a vida.
Pois enquanto completo 70 anos comparo o tédio desse dia que não anda com a agonia dessa vida apressada que não consigo acompanhar. Para resolver o disparate, tento me desembaraçar das imposições culturais que me impedem de considerar este um dia comum. Apago o email de parabéns do programa de milhagem, o do banco e o das Americanas que me desejam feliz aniversário e começo a encarar o zilhão de coisas que tenho que fazer. A sensação não é boa. É como se eu estivesse tirando as moedas do porquinho para pagar uma dívida monumental.
Sou refém do fantasma dos 70 anos. Seria a hora de fazer com Paul Laforgue, o genro de Marx, que se suicidou com a mulher, aos 69 anos, “antes que a impiedosa velhice paralise minhas energias e enfraqueça minha vontade”. Mas ontem perdi esse prazo.
Também sei que tem a velhice dos 50, a dos 60. mas a dos 70 é definitiva. Acho que descobri uma boa definição de velho: todo mundo que tem 20 anos a mais do que aquele que acuso (o outro de velho). Um homem de 40, para quem tem 20; um de 50, para quem tem 30; e assim por diante, até as pessoas de 80, para quem tem 60. mas essa definição não vale mais para os 70, a partir daí (daqui) não existem muitos velhos com quem me comparar, agora é comigo mesmo. Estou fazendo a última escala antes do fim da viagem.
“Voe não parece” e “não me sinto” são atenuantes que não valem muito. E as famosas compensações muitas vezes são amargas. Por exemplo, uma coisa que é vista bem dessas alturas é a transitoriedade. Passo na Avenida Vieira Souto, vejo um apartamento sendo reformado e penso no dia em que esse casal de jovens bem-sucedidos e as modernas luminárias que estão instalando vão ser substituídos outra vez, vão entrar também no saco do passado, como entraram agora os ex-habitantes do imóvel.
Para piorar, a melhor visão que se tem daqui é a da morte. Quando se soma a todos os acidentes a proximidade do fim do funcionamento da máquina, a morte senta, rindo, na cadeira em frente. Você levanta e ela vai junto. Às vezes me surpreendo querendo saber se o que vou fazer pela última vez é abrir ou fechar a porta de casa, isto é, se saio e não volto mais, ou se entro e não saio mais.
Enquanto completo 70 anos, esfrego o rosto, faço caretas só pensando no que ficou faltando fazer, querendo de volta as horas em que fiquei bestando. Vu segurando na química a pressão, o colesterol e fazendo fisioterapia para apressar o passo. Os anos que faltam são poucos, é preciso correr. Quero fazer muita coisa ainda. Mesmo sem saber para quê.
Sentada aqui em frente, a “moça” me mostra uma fotografia bem antiga de uma praça: essa gente toda já morreu, essas mulheres e homens, essas jovens risonhas, essas criancinhas de colo. Corta pra hoje. Sou como o velho da foto, sentado nesse banco, empertigado. E os outros são os que dividem o mundo comigo hoje. Daqui a um tempo, vamos ser só essa fotografia, que outro sem destino vai estar olhando nos seus 70 anos. Desculpem, estou dividindo com vocês meu pouco tempo.

  • Aderbal Freire-Filho é ator, diretor e esritor teatral e está em cartaz com o espetáculo “Depois do filme” no Teatro Poeirinha, em Botafogo, Rio de Janeiro, RJ.
       Fonte: Revista O GLOBO . Ano 7 . n 355 . 15 de maio de 2011.



A VELHICE DA PORTA-BANDEIRA*
Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro

Ela renunciou
A Mangueira saiu
Ela ficou
Era porta-bandeira
Desde a primeira vez
Por que terá sido isso que ela fez?

Não, ninguém saberá
Ela se demitiu
Outra virá
Ninguém a viu chorando
Coisa tão singular
Quando a bandeira tremeu no ar

Ô ô ô

Quando a avenida sambou ô ô
O seu mundo desmoronou
Ela se emocionou
Perto dela ela ouviu
Alguém gritou:
Viva a porta-bandeira
“Sou eu”, ela pensou
Mas foi a outra quem se curvou!

Ô ô ô
Quando toda a avenida sambou ô ô
O seu mundo desmoronou

Ô ô ô
Quando a porta-bandeira passou, quem viu?
Ela se levantou e aplaudiu
* Histórias das minhas canções / Paulo César Pinheiro. – São Paulo: Leya, 2010.








6 comentários:

  1. Bem, várias coisas: Antonio Candido caminha para os 100 (nasceu em 1918). Maria Amélia Buarque de Holanda morreu este ano de morte natural, dormindo, com 100 anos completos. Esta semana meu querido Bob Dylan completou 70.

    Eu, com 42, me vi citada no seu texto, entre os amigos mais novos.

    Para minha surpresa, os 40 me trouxeram um estado de espírito novo, como se visse os 30 a anos-luz de distância. Estou conjugando bem silêncio e solidão, mas o corpo me manda sinais preocupantes: terei problemas, não aqueles que matam de vez, mas os que arrastam.

    O Joyce é um encanto: "E o resto nunca se espera / O resto é a próxima esfera / O resto é outra encarnação...”

    Há seres miúdos com que convivo semanalmente, meus alunos do 6º ano. Conversam muito, deeeeemais, mas me faz bem conviver com a sutil malícia deles. Alguns me abraçam, me beijam, e eu sinto ali uma coisa muito boa. São atentados até o osso, mas é que a energia deles é muita, parece não querer caber no corpo. E tem a minha sobrinha de 4 anos, que eu amo de paixão, uma criaturinha linda que me faz sentir essa coisa que o Joyce falou: a próxima esfera.

    Me consola saber que há seres compartilhando comigo essa estrada do envelhecer: você, a Maria Fernanda, alguns outros amigos da minha faixa etária. Ainda estamos bem, ainda estamos vivos, longe, certamente, da certeza do inevitável, que a vizinhança dos 100 traz.

    Obrigada por compartilhar comigo a áspera beleza da vida. Beijos!

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  2. (para se chegar até lá, não vai ser tudo na base do amor, do sorriso e da flor. Até lá, nem tudo vai caminhar “sur de roulettes”, ou seja, “maravilhosamente bem”)

    Todos, ou quase isso, vivemos sem esperar a idade de três algarismos; no entanto, acredito que a maioria queira alcançá-la.
    Fábio, meu amigo: não estará sozinho aos 100; se precisar de alguém para limpar seus vínis, quando chegar lá, estarei já na "melhor idade" e te darei uma mãozinha - rs.

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  3. Atingir um século de existência é uma graça excepcional, com lucidez e capacidade de locomoção é uma dádiva; é ter um conhecimento da vida consciente, único; algo como ter uma vela acesa que só se apagará apenas sem ventanias ou correntes de ar mas quando acabar o pavio cuja luz fenece lentamente na escuridão, como fechar os olhos e dormir tranquilamente na eternidade.
    Um abraço Fábio.

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  4. 1) Mariana, Marianinha, bom à beça compartilhar com você "a estrada do envelhecer". Gosto muito de você, amiga.
    2) Davel, acho que sua ajuda vai ser melhor no momento de pôr a agulha sobre os vinis, viu? Com 100, posso correr o risco de arranhar algum disco. Des me livre! Deixe a limpeza comigo.
    2) José Manuel, o amigo português mais chique que tenho, comoventes - e lindas! - suas palavras. Preciso ir aí. Você topa ser meu cicerone?
    Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim, Fábio

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  5. Meu amigo querido, que coisa linda! Amei a "Sozinhez dos 100", em especial, (rindo muito) porque já fiz aquela ultrapassagem sintomática dos 50. Brincadeiras à parte, o que me encantou mesmo é esse seu olhar singelo, calmo e tranquilo sobre fatos do dia-a-dia. Isso é maturidade, meu amigo.

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  6. Rê, minhha amiga, o bom é que você fez a "ultrapassagem sintomática dos 50" sem trocar os pneus. Que beleza! Beijos,

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